19 de dezembro de 2022

Turismo de base comunitária quilombola na Bahia (Brasil): Uma práxis educativa decolonial e transmoderna

Quilombola community based tourism in Bahia (Brazil): A decolonial and transmodern educational praxis

RESUMO:

Tássio Simões Cardoso1 Natanael Reis Bomfim2

Este artigo, originado de uma pesquisa doutoral, financiado pela Fundação de Amparo e Pesquisa da Bahia (FAPESB) e vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), teve como objetivo analisar as práticas socioeducativas existentes no território quilombola do Quingoma (BA), a fim de contribuir para o desenvolvimento do Turismo de Base Comunitária (TBC), enquanto práxis decolonial e transmoderna. Para tal, por meio da pesquisa qualitativa e de abordagem etnográfica, concluiu- se que o TBC protagonizado pela comunidade do Quingoma é uma práxis decolonial e transmoderna, onde os processos socioeducativos que o constituem, além de serem distintos e antagônicos em relação

 1 Doutorando em Educação e Contemporaneidade pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Mestrado em Gestão e Tecnologias Aplicadas à Educação pela Universidade Estadual da Bahia (UNEB).). Professor da Rede Estadual de Ensino da Bahia. E-mail: tassioeducacao@gmail.com

2 Pós-Doutorado em Educação Geográfica pela Universidade de Paris I, Sorbonne. Doutorado em Educação pela Universidade do Quebec. Professor da Universidade do Estado da Bahia, atuando no Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade e no de Gestão e Tecnologia Aplicadas à Educação. E-mail: nabom_reis@hotmail.com

  

 ABSTRACT:

à hegemonia da matriz colonial, posto que estão baseados numa cosmogonia ancestral afro e indígena, possibilitam a interação crítica e ética entre culturas diferentes (do turista e da comunidade receptora) e favorecem o diálogo intercultural crítico, fundamental para a construção

de uma visão transmoderna da contemporaneidade.

Palavras-chave: Turismo de Base Comunitária; Educação; Decolonialidade.

This article was from a doctoral research, financed by the Fundação de Amparo e Pesquisa da Bahia (FAPESB) and linked to the Postgraduate Program in Education and Contemporaneity of the University of the State of Bahia (UNEB), Brazil, aimed to analyze the socio-educational practices existing in the Quilombola territory/ community of Quingoma (Bahia, Brazil), in order to contribute to the development of Community- Based Tourism (CBT), as a decolonial and transmodern práxis. To this end, through qualitative research and an ethnographic approach, it is a transmodern praxis, where the socio-educational processes that constitute it, in addition to being distinct and antagonistic in relation to the hegemony of the colonial matrix , since they are based on an ancestral Afro and Indigenous cosmogony, they enable critical and ethical interaction among different cultures (from the tourist and the receiving community) and favor critical intercultural dialogue, fundamental for the construction of a transmodern vision of contemporaneity.

Keywords: Community-Based Tourism; Education; Decoloniality. 1 INTRODUÇÃO

Este estudo qualitativo e de abordagem etnográfica foi originado de uma pesquisa doutoral, financiado pela Fundação de Amparo e Pesquisa da Bahia (FAPESB) e vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e realizado no contexto da Comunidade do Quilombo Quingoma, Bahia, Brasil. Teve como objetivo analisar as práticas socioeducativas existentes no território quilombola do Quingoma (BA), a fim de contribuir com o desenvolvimento de um Turismo de Base Comunitária –(TBC), enquanto práxis decolonial e transmoderna.

Esta temática faz parte dos debates social e científico que contempla fenômenos da educação e das políticas públicas contra hegemônica, ou seja, que emerge da

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   comunidade. Por isso, os estudos latino-americanos se inserem em dois eixos: o que contribui para um conhecimento mais amplo acerca do paradigma da decolonialidade; e o que denota práticas epistêmicas de reconhecimento e transgressão da colonialidade, produzidas na América Latina e outras regiões colonizadas.

Na contemporaneidade, a reflexão de decolonialidade ganha sentido na noção filosófica dusseliana de transmodernidade3, evidenciada como um horizonte utópico possível, no qual o diálogo crítico entre as culturas que foram e ainda são oprimidas pelo eurocentrismo oferecem novos campos de lucidez para pensar ensaios civilizatórios transgressores. E o que permite refletir criticamente sobre a problemática do TBC no Brasil, na perspectiva da promoção e do sentido coletivo de comunidade, além de contribuir com a promoção da qualidade de vida por meio da adoção de práticas econômicas solidárias e sustentáveis, voltadas para a valorização das matrizes culturais locais (IRVING, 2009).

Teoricamente, o estudo ancorou-se nesses dois eixos, quando enfatizou o conceito de práticas socioeducativas, como idealização sobre o devir que se pauta na esperança, na solidariedade, na organização coletiva de uma comunidade que busca o fortalecimento identitário nos coletivos de pertencimento.

Segundo Pimentel, Bomfim e Santana (2021, p. 48) essas práticas são promovidas pelas comunidades periféricas, aqui traduzidas como tradicionais, “em espaços educativos não formais considerados espaços sociais”, em três dimensões: socioafetivas que são multilinguagens disseminadas pela música, dança, literatura, entre outras; funcional, quando elas fornecem informações significativas para a compreensão dos valores construídos pelos atores sociais, no contexto da família, da escola, dentre outros espaços de formação; e a atitudinal que valoriza os atos de investimentos desses povos, como experiências formativas em arte e educação capazes de contribuir para a quebra de estigmas modernos e paradigmas eurocentrados, mediante o fortalecimento de redes colaborativas decoloniais e transmodernas.

Empiricamente, o estudo se efetivou na comunidade quilombola do Quingoma, reconhecida pela Fundação Palmares como Quilombola, mas ainda não recebeu a titulação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), localizada no município de Lauro de Freitas, região metropolitana de Salvador (Bahia-Brasil), Zona Turística Costa dos Coqueiros.

O território do Quingoma foi classificado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010) como “Área urbanizada de cidade”, embora apresente aspectos

3 Inspirada em Dussel (2006), esta perspectiva aponta para o surgimento de uma cultura transmoderna emergente, fecundada no diálogo ético e simétrico entre tradições que foram oprimidas pela globalização hegemônica da modernidade, mas que estão em desenvolvimento dinâmico e oferecerem novos olhares aos problemas e desafios da contemporaneidade.

Turismo e Sociedade (ISSN: 1983-5442). Curitiba,v 15,n.2, p. 201-219, maio-agosto de 2022.

 

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 de ruralidade. Faz parte da Área de Preservação Ambiental Joanes-Ipitanga, (64.463 hectares), que abrange também os municípios de Camaçari, Simões Filho, São Francisco do Conde, Candeias, São Sebastião do Passé, Dias D’Ávila e Salvador (Figura 1).

FIGURA 1 - LOCALIZAÇÃO DO QUINGOMA

FONTE: Relatório Antropológico do INCRA (2016).

Pelo exposto, a problemática que se desenhou foi uma relação intrínseca entre as práticas socioeducativas quilombolas e o TBC. Defendeu-se então que existem diálogos entre as práticas socioeducativas e suas interfaces com o TBC, quando se reconhece o quilombo na condição de um chão epistêmico decolonial, onde insurgem outros modos de ser, viver e aprender.

A metodologia desta pesquisa foi de abordagem etnográfica no qual buscou-se discutir, criticamente, o Turismo de Base Comunitária (TBC) a partir do aporte teórico– conceitual da decolonialidade. Neste sentido, o TBC foi pensado enquanto processo civilizatório insurgente, fecundado nas brechas e fissuras de uma modernidade decadente.

2 TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA: CONCEITOS E PRÁTICAS

O TBC consiste numa forma contra-hegemônica de organização social ancorada numa prática turística de dimensão local, na qual a comunidade por meio de dispositivos de autogestão social, define os roteiros, os produtos comercializados e os aspectos do modo de vida tradicional que serão transformados em atrativos turísticos (FABRINO; NASCIMENTO; COSTA, 2017).

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 Esta noção conceitual do TBC foi sistematizada a partir de alguns fundamentos norteadores tais como: i) autogestão; ii) associativismo e cooperativismo; iii) democratização de oportunidades e benefícios; iv) cooperação solidária; v) valorização da cultura local e do patrimônio natural.

As iniciativas de TBC começam a ganhar destaque na contemporaneidade, despertando atenção de pesquisadores, ONGs e instituições oficiais, a partir de um conjunto de mudanças no cenário nacional e internacional. Tais transformações foram didaticamente sistematizadas por Irving (2009) e envolvem: i) interpretação política do turismo como uma alternativa para a superação das desigualdades e injustiças sociais; ii) fortalecimento de temas como economia solidária, participação social e governança democrática; iii) adoção por parte de empresas, ONGs e governos de projetos voltados para a responsabilidade social e desenvolvimento humano; (iv) mudança sutil no perfil dos turistas, sujeitos mais sensíveis às questões socioambientais; (v) exigência de um turismo mais comprometido com o desenvolvimento social das comunidades receptoras; (vi) emergência dos debates sobre o “turismo e sustentabilidade”.

Vale ressaltar, ainda, que o contexto da crise sanitária provocada pela Covid 19 afetou drasticamente o turismo, por exemplo: estimativas recentes da OMT (UNWTO, 2020), baseadas em projeções globais apoiadas na dinâmica de fechamento de fronteiras e nos inúmeros riscos associados às dinâmicas das viagens, em função da pandemia, indicam, globalmente, a perda de mais de 100 milhões de empregos e 1 trilhão de dólares em termos de impacto econômico, uma vez que, segundo esse documento, 1 bilhão de turistas deixarão de circular pelo mundo.

Para além, a pandemia desnudou e agravou problemas sociais crônicos como desemprego, fome, déficit educacional, dentre outros, sobretudo na realidade dos países periféricos como o Brasil. Nesse novo cenário pandêmico de múltiplas incertezas, o turismo, em bases sustentáveis, não poderia seguir apenas a lógica do mercado e nem políticas verticais do Estado, mas o seu planejamento precisa está ancorado no compromisso ético com as problemáticas socioambientais do nosso tempo e com as gerações futuras num contexto de uma modernidade em crise. (IRVING; COELHO; ARRUDA, 2022).

Pelo exposto, esta crise trouxe múltiplos desafios para o TBC no Brasil, talvez, uma quantidade considerável de iniciativas, sobretudo aquelas que não conseguiram consolidar os processos de autogestão social e planejamento estratégico, tenham dificuldades de retomar suas atividades no processo de reabertura da atividade turística. Essas iniciativas são protagonizadas por grupos sociais diversos, a saber: reservas indígenas, comunidades quilombolas, assentados da reforma agrária, ribeirinhos, coletivos periféricos urbanos, caiçaras, dentro outros (MORAES, 2019).

Esse mosaico reflete a diversidade de vivências que os roteiros comunitários proporcionam para os excursionistas e turistas, e desse modo, faz-se necessário, do ponto de vista acadêmico e social, avançar no conhecimento dessas experiências e das comunidades que as protagonizam.

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 A maioria das experiências de TBC incorpora, de forma consciente ou não, princípios e valores da economia solidária, da visão agroecológica e da concepção emancipatória da educação. Por um lado, práticas de economia solidária fundada na construção utópica de uma sociedade ambientalmente sustentável (SINGER, 2002). E, por outro lado, a visão agroecológica que envolve conhecimentos transdisciplinares - teóricos e empíricos que buscam possibilitar o desenvolvimento de agroecossistemas sustentáveis e, por extensão, a preservação da biodiversidade e o aumento da qualidade de vida da população local.

Por uma educação emancipatória, as experiências de TBC são atravessadas por processos educacionais críticos, contextuais e libertários, pois é comum nos roteiros comunitários a construção de diálogos e reflexões entre os anfitriões e turistas sobre políticas públicas, cultura, meio ambiente, bem como as problemáticas sociais que afligem o cotidiano da comunidade. Neste sentido, há um alinhamento ou mesmo influência, direta ou indireta, da concepção educacional de Freire (1981) quando ele afirma que o processo de humanização dos oprimidos envolve o reconhecimento e a libertação das forças opressoras que os oprimem.

Vale destacar que no Brasil as iniciativas de TBC possibilitam, dessa forma, uma imersão autêntica e memorável no modo de vida tradicional destes grupos. No TBC, o turista aprende a aprender a partir do modo de vida tradicional da comunidade que o acolheu. Trata-se, então, de uma prática turística de imersão, uma imersão afetiva, e, por assim dizer, regenerativa.

Estas vivências ensejam práticas socioeducativas decoloniais e transmodernas voltadas para a preservação da cultura tradicional e da biodiversidade local. Assim, envolvem a visitação de sítios históricos e sagrados, realização de trilhas, caminhadas, mutirões, plantio simbólico, banho de rio, observação de pássaros, contemplação do pôr do sol, apreciação da culinária local, práticas com o artesanato, contação de histórias e as danças tradicionais, terapias de cura, bem como apresentações artísticas de teatro e poesia, além de uma série de outras práticas que desvelam um Brasil autêntico.

Por exemplo: uma das primeiras iniciativas de TBC no Brasil foi o projeto Prainha do Canto Verde, Beberibe, Ceará. Este projeto surgiu como uma política de resistência em relação ao Programa de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste (PRODETURNE)4, cuja implementação na região não levou em consideração os direitos e anseios da comunidade, a qual, por sua vez, via o seu território constantemente sendo ameaçado pela intensa especulação imobiliária e outros fenômenos nocivos ocasionados pelo Turismo de Massa, como a prostituição e o aumento da violência. Desse modo, a

4 Programa implantado pelo governo federal em 1992, por meio do Ministério dos Esportes e Turismo e elaborado em parceria com o BNDES, o Banco do Nordeste do Brasil (BNB), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), além dos governos dos Estados do Nordeste. Teve como enfoque a ampliação da infraestrutura regional para ampliar e atrair a superestrutura do setor turístico. (MORAES, 2019, p. 79).

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 comunidade em questão resolveu se organizar para planejar e executar sua própria prática turística, com autonomia e protagonismo, voltada para valorização da cultura local, a defesa do território, a geração de renda e trabalho (MORAES 2019). Neste projeto, é possível o turista fazer passeios da jangada, catamarã, trilhas ecológicas, apreciar a culinária local, dentre outras atividades.

Outro exemplo de TBC no Brasil foi o projeto: Rota da Liberdade, realizado desde 2009 por comunidades quilombolas da Bacia e Vale do Iguape (Cachoeira - Bahia), sua programação e roteiros são marcados por apresentações culturais, feiras e atividades voltadas para apicultura, artesanato e produção de azeite de dendê. Um exemplo destas atividades culturais é o Festival da Ostra, que mobiliza turistas de várias partes do mundo, favorecendo a geração de renda e trabalho por meio do fortalecimento da produção associação ao turismo. Na comunidade Quilombola Kaonge, principal quilombo responsável por este projeto, há um banco comunitário cuja moeda social se chama “Sururu”. Esta contribui com a circulação do dinheiro na própria localidade, asseverando a fuga de divisas e, por conseguinte, uma maior sustentabilidade social e econômica.

Para além dessas experiências mais antigas, há também iniciativas ainda em fase embrionária, porém já demostram força e autogestão social. Uma delas é o projeto TBC do Quingoma, realizado pelo Quilombo do Quingoma, desde 2018, que possibilita ao turista uma imersão nas tradições e ancestralidades quilombolas e indígenas, tais como: vivência com o samba de roda, toré, pintura corporal, trilhas ecológicas, danças circulares, bem como apresentações de música, poesia e dança, práticas que retratam o modo de vida tradicional. Para construir o lastro empírico desta investigação, considerou-se a realidade social deste quilombo, lócus de pesquisa da tese que inspira a escrita deste artigo.

No campo das ciências humanas e sociais problematiza-se a crise moderna e suas inúmeras facetas. O progresso, a ordem, a felicidade individual e coletiva, promessas desta modernidade não foram alcançadas, ao passo que a desigualdade social, a pobreza, a fome, as novas formas de escravidão, o racismo institucional, as mudanças climáticas, a disrupção tecnológica, a crise migratória, o aumento da deterioração dos recursos naturais e a eclosão de epidemias e pandemias, como a provocada pela Covid 19, são apenas alguns desafios enfrentados pela humanidade nos prelúdios do século XXI. Mas até que ponto estas problemáticas podem ser enfrentadas de forma criativa e resoluta apenas a partir dos postulados da racionalidade moderna?

É importante evidenciar que, para além de uma reflexão teórica, o desenvolvimento de uma crítica à modernidade envolve também uma práxis política, já que “ultrapassa limites teóricos se impondo enquanto uma atitude revolucionária, uma vez que toma partido dos vencidos e denuncia a história dos vencedores como uma história de sucessão de desastres” (BORGES, 2017, p. 184). Porém, o intuito aqui não é negar os aspectos positivos do paradigma moderno como, por exemplo, as grandes contribuições da ciência moderna europeia para o avanço técnico-científico da

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 humanidade, o desenvolvimento do Estado de Bem-Estar Social, a fecundidade de escolas filosóficas ocidentais tributárias de um pensamento crítico, dentre outros.

O que se coloca em relevo neste trabalho é o imperativo ético-político de problematizar o lado sombrio da modernidade constituído por aquilo que Quijano (2005) denominou de colonialidade do poder. Para este autor, o declínio da colonização e da escravidão enquanto regimes jurídico-administrativos não significou o fim das relações de dominação/exploração entre países (centro x periferia) e da hierarquização étnico-racial dos povos (branco europeu “superior” x outras raças “inferiores”), pois esse padrão de poder continua conformando as relações sociais, econômicas e culturais até os dias atuais.

Para avançar nessa reflexão, faz-se necessário apresentar uma noção conceitual de modernidade. Entende-se o paradigma moderno como uma visão de mundo construída pela Europa a partir do renascimento no qual os europeus se autoproclamaram como detentores de uma cultura superior em relação a outros povos. Ou seja, trata-se de uma autonarrativa europeia [ ] construída a partir do Renascimento quando os europeus conceberam-se a si mesmos como o centro do mundo (DUSSEL, 2015, p. 51).

A história enquanto filosofia do exemplo é prova cabal do quão esta narrativa de superioridade europeia deixou marcas indeléveis na humanidade. Desse modo, problematizá-la e superá-la, seja, talvez, um dos grandes desafios epistêmicos do século. E é nesse bojo que as letras deste trabalho estão inseridas.

Assim, a partir de uma perspectiva decolonial5, reconhece-se que esta narrativa de superioridade da racionalidade europeia foi o elemento matriz que fomentou a repressão e o silenciamento de outras visões de mundo. Em outras palavras, trata- se de uma específica racionalidade ou perspectiva de conhecimento que se torna mundialmente hegemônica colonizando e sobrepondo-se a todas as demais, prévias ou diferentes e a seus saberes concretos (QUIJANO, 2005).

A utilização dessa racionalidade como o único meio confiável para interpretar a vida, a natureza e as relações levaram o “ser moderno” a se colocar como o centro do mundo. Esse antropocentrismo, radicalizado a partir do ideário renascentista e iluminista, evidencia um projeto de modernidade no qual o progresso seria indubitavelmente alcançado por meio da ciência e do Estado liberal nascente, ambos orientados pelos valores racionais da objetividade, produtividade, técnica e eficácia.

5 Com uma crítica a hegemonia da cultura europeia, o pensamento decolonial pode ser compreendido como uma construção epistemológica e teórica, basicamente defendida por intelectuais latino americanos (Aníbal Quijano, Edgardo Lander, Ramón Grosfoguel, Agustín Lao-Montes; Enrique Dussel, Santiago Castro-Gómez, María Lugones, Nelson Maldonado-Torres; Walter Mignolo; a Catherine Walsh; Arturo Escobar,Fernando Coronil, Eduardo Restrepo) que objetiva romper com uma produção do conhecimento alicerçado no eurocentrismo, defendendo, desta forma, uma pluralidade de conhecimentos, práticas e saberes que foram e são silenciados ou ocultados.

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 Assim, toda cosmovisão de mundo ou conhecimento que estivesse fora desse horizonte de sentidos seria interpretado como algo de menor ou nenhum valor.

Desse modo, a cultura europeia durante a constituição histórica da modernidade, ao se estabelecer enquanto centro de poder no mundo, impõe o seu modelo civilizatório, fazendo da racionalidade moderna o único caminho legítimo de produção do conhecimento. Nesta linha monológica de pensamento, a diversidade de conhecimentos, culturas e tradições, tributária do fértil patrimônio cultural da humanidade e fonte vigorosa e constante de novos núcleos geradores de sentido, foi deslegitimada e reprimida pela expansão global da civilização europeia.

Neste trabalho o referido fenômeno é reconhecido como um padrão de poder por meio do qual a racionalidade eurocêntrica, mundialmente hegemônica, ao colonizar indígenas, africanos e outros povos, reprimiu/explorou não apenas seus corpos e territórios, mas também alijou suas culturas, conhecimentos e visões de mundo da história da produção filosófica, científica e cultural da humanidade (QUIJANO, 2005; ARROYO, 2014).

Ao problematizar essa visão, aponta-se para uma perspectiva decolonial e transmoderna onde “a modernidade não é sinônimo de humanidade, mas apenas uma versão da aventura humana, a racionalidade moderna tampouco é a razão, mas um modo ou modelo desta, a respectiva oferta de sua força e a impossibilidade de seus limites”. (SANTOS, 2013, p. 208). O pensamento fecundo deste autor aponta uma alternativa à racionalidade moderna fechada em si mesma. Nele, outras fontes de sentido são legitimadas enquanto produtoras de conhecimento, ou seja, há uma diversidade de fontes sapienciais que, ao estarem situadas para além dos postulados da razão crítica moderna, desnudam perspectivas potentes e inovadoras sobre os fenômenos complexos da vida.

A alternativa à razão crítica não é, portanto, de modo algum a razão acrítica – contradição nos termos –, mas o pensamento metacrítico ou fecundo. O meta (“além de”), referido no termo “metacrítico”, indica a abertura da razão a instâncias hermenêuticas – tais como tradição, revelação e autoridade –, nas quais surpreende uma potência de sentido que, por seus próprios recursos reflexivos, ela não tem como prover a si mesma. Uma das características diferenciadoras do pensamento fecundo é, pois, a sua radical passividade, uma vez que o sentido não resulta da iniciativa intencional da consciência reflexiva, mas advém- lhe por dom. É encontrado. O pensamento fecundo recebe o logos daquele núcleo gerador de sentido a que pertence, escuta e reverencia. (SANTOS, 2013, p. 209).

Para além, ele traz uma perspectiva de leitura dos fenômenos da contemporaneidade a partir de fontes alternativas de sentidos que foram desprezadas pelo paradigma moderno. Estas fontes são oriundas de núcleos sapienciais diversos, cujos saberes relevam uma potência de vida acenando para o cultivo da transcendência, alteridade e tradição.

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 O pensamento fecundo, ao reconhecer os limites da racionalidade moderna, dialoga com a ideia de transmodernidade. No contexto de uma Filosofia da Libertação, Dussel (2016a) começa a estruturar a noção de transmodernidade. Tal autor, considera, a partir de uma crítica à interpretação eurocêntrica da história universal, que a Europa apenas se estabelece enquanto centro de poder hegemônico mundial depois da revolução industrial6 (1750), pois foi o advento desta revolução que possibilitou as potências europeias a produzirem em escala global. Sendo assim, os países europeus, por meio de ações imperialistas7, passaram a dominar o mercado mundial.

Para Dussel (2016a), o expansionismo marítimo- comercial europeu dos séculos XV e XVI criou as condições históricas para o surgimento de uma economia globalizada, de um sistema mundo, mas isso não implicou na dominação hegemônica europeia do mercado mundial, posto, por exemplo, que a China foi até o século XVIII a maior potência produtora de mercadorias, com destaque para os valiosos utensílios de porcelana e os tecidos de seda.

Assim, o autor acima aludido chama atenção que foram pouco mais de dois séculos de dominação europeia e não cinco séculos como postulava muitos filósofos europeus. Este período não foi suficiente para que a globalização técnica e econômica protagonizada pela Europa se configurasse enquanto uma globalização cultural da vida cotidiana de toda humanidade. Em outras palavras, Dussel (2016a) apresenta uma suposição filosófica onde ele afirma que a dominação europeia, por ser historicamente recente, não destruiu a diversidade de culturas que caracteriza o rico patrimônio cultural da humanidade. Logo, estas culturas - exteriores a modernidade europeia - continuam vivas, pulsantes, resistentes, com um desenvolvimento dinâmico próprio, capaz de oferecer contribuições inovadoras para se pensar os grandes problemas da humanidade no século XXI.

Pode-se, assim, considerar que a transmodernidade é uma afirmação cultural que nasce do diálogo fecundo, crítico e ético entre as múltiplas culturas marginalizadas pela tradição moderna europeia-norte americana, mas que, ao mesmo tempo, considera os avanços positivos da modernidade. Ou seja, “essa Transmodernidade deveria assumir o melhor da revolução tecnológica moderna – descartando o antiecológico – para colocá-la a serviço de mundos valorativos diferenciados, antigos e atualizados, com tradições próprias e criatividade ignorada” (DUSSEL, 2016a, p. 170).

6 O processo de Revolução Industrial teve início no século XVIII, na Inglaterra, com a mecanização dos sistemas de produção. A elite burguesa industrial, ávida por maiores lucros, menores custos e produção acelerada, apostou na modernização do sistema produtivo como uma alternativa para ampliar a produção de mercadorias e conquistar novos mercados.

7 O imperialismo precisa ser compreendido como uma política de dominação política, econômica e cultural de um Estado sobre outros povos. No texto, tal fenômeno histórico refere-se ao imperialismo europeu que se desenvolveu a partir da segunda metade do século XIX, onde potências europeias industriais como a Inglaterra, França, Alemanha, Bélgica etc. formaram grandes impérios econômicos. A formação destes impérios implicou na exploração da mão de obra, matéria prima e domínio do mercado consumidor de vastas regiões do continente africano, asiático e da américa latina.

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 Dussel (2016a) se refere à transmodernidade como um projeto mundial para além da modernidade europeia e norte americana. De acordo com o pensador, a transmodernidade, ao romper com o eurocentrismo, não pode ser considerada pós- moderna, uma vez que o pós-moderno é uma crítica parcial à modernidade, pois baseia-se ainda numa visão eurocêntrica de mundo. Assim sendo, a perspectiva transmoderna nasce do diálogo crítico e ético entre os núcleos ético-míticos8 das culturas marginalizadas pela modernidade. Esta passa a ser interpretada nas suas potencialidades e limites, a partir dessa nova consciência transmoderna, refletindo a pluralidade das contribuições históricas de culturas ancestrais. Nas palavras de Dussel, a noção conceitual da transmodernidade aponta para:

Essa novidade radical que significa o surgimento – como se a partir do nada – da exterioridade, da alteridade, do sempre distinto, de culturas universais em desenvolvimento, que assumem os desafios da Modernidade e, até mesmo, da pós-modernidade euro-americana, mas que respondem a partir de outro lugar, other location (Dussel, 2002), do ponto de sua própria experiência cultural, diferente da euro-americana, portanto capaz de responder com soluções completamente impossíveis para a cultura moderna única. Uma futura cultura transmoderna, que assume os momentos positivos da Modernidade terá uma pluriversalidade rica e será fruto de um autêntico diálogo intercultural, que deverá ter claramente em conta as assimetrias existentes (DUSSEL, 2016b, p. 60).

Nas bordas do projeto moderno em exaustão, caracterizado sobretudo pela deterioração da natureza e crescimento das desigualdades e injustiças sociais, consta-se essa pluridiversidade rica onde há núcleos humanos que ainda conservam, na sua memória ancestral e práticas sociais, uma sabedoria e criatividade ancoradas em modos de vida sustentáveis. Estes núcleos humanos estão basicamente nas margens dos rios e oceanos, no campo, nas florestas e nas periferias das cidades da América Latina, África e Ásia. Foram invisibilizados, mas não estão apagados, estão ativos, vivos, criando praticas socioeducativas de resistências e (re)existências, ou seja, diante da falta de políticas públicas, do racismo histórico, da necropolítica, do (proto)fascismo, estas comunidades gritam sua dor, mas, ao mesmo tempo, transformam esta dor em fonte de força e beleza espirituais, renovando o mundo com novos sentidos de existência.

Portanto, as iniciativas de TBC por possibilitarem o contato do turista com esses núcleos humanos, criam condições para a produção, fortalecimento, valorização e difusão de saberes e práticas de resistência criadora e ancestral. Sendo assim, a própria dinâmica de realização do TBC, no Brasil, tem como base a produção de

8 Utiliza-se nesse documento a expressão núcleo ético-mítico no sentido que Dussel (2016) atribui ao termo no seu livro: “Paulo de Tarso na filosofia política atual e outros ensaios” quando resgata as ideias de Paul Ricoeur: “as culturas, no dizer de Paul Ricoeur, têm, por sua vez, um núcleo ético-mítico, ou seja, uma visão de mundo que interpreta os momentos significativos da existência humana e que os guia eticamente”. (DUSSEL, 2016. p. 176).

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 conhecimento a partir de bases epistêmicas decoloniais e transmodernas.

Nessas vivências, os turistas experienciam, junto com os anfitriões, processos educativos diversos que reconhecem a sensibilidade, a intuição, a espiritualidade, o corpo e a tradição como fontes de conhecimento, transgredindo, dessa forma, os postulados do racionalismo eurocêntrico. Esta práxis educativa tecida por uma subjetividade tradicional/ popular é também transmoderna, pois além de produzir conhecimento para além dos valores eurocêntricos sobre os quais a sociedade brasileira foi conformada, ensaia novas possibilidades civilizatórias a partir do diálogo entre culturas distintas.

Pelo exposto defende-se a noção de transmodernidade na perspectiva filosófica de Dussel (2016a), pois este autor deixou um legado para filosofia, história e ciências sociais de modo geral. Isso em virtude de ter assinalado a transmodernidade como uma construção de um novo projeto de humanidade, a partir da emergência do diálogo crítico e ético entre núcleos míticos das culturas marginalizadas e subalternizadas pela modernidade eurocentrada e norte-americana.

Portanto, concebe o TBC como palco síntese das contribuições históricas de culturas ancestrais que estão vivas e em movimento dinâmico de ressignificação. Assim, para sustentar esta perspectiva teórica, na próxima seção, serão apresentadas as trilhas metodológicas delineadas, tendo em vista atender o objetivo do presente estudo, que é de analisar as práticas socioeducativas existentes no território quilombola do Quingoma (BA), pensando o TBC como práxis decolonial e transmoderna.

3 TRILHA METODOLÓGICA DO ESTUDO, ANÁLISE SOBRE AS PRÁTICAS SOCIOEDUCATIVAS DO QUILOMBO DO QUINGOMA

A base empírica deste trabalho envolve a complexa realidade social do Quilombo do Quingoma (Bahia-Brasil). Neste sentido, o presente estudo foi de natureza qualitativa e de abordagem etnográfica (Quadro 1), pois se insere no campo da Educação na Contemporaneidade, no qual se aplicou métodos e técnicas qualitativas tendo em vista apreender os conhecimentos locais e ancestrais produzidos pelos quilombolas do referido Quingoma.

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 Objetivos

    Etapas

   Dispositivos de coleta de dados

  Métodos de análise e interpretação dos dados

  Descrever o processo histórico de for- mação do Quilombo Quingoma, abor- dando suas matrizes identitárias e sua organização social e política.

   Primeira (2019/2020)

  Teses/artigos/ livros/ leis.

  Análise Bibliográfica e Documental.

  Analisar as práticas socioeducativas de- senvolvidas pelos quilombolas do Quin- goma.

  Segunda (a) (2019/2020)

 Observação Participante Entrevista semidirigida em Grupo Focal.

   Apreender, nas práticas socioculturais quilombolas, elementos-chave que con- tribuam para o desenvolvimento de ações educativas que promovam o TBC.

 Segunda (b) (2021)

  Entrevista semidirigida em Grupo Focal;

    Propor estratégias de planejamento e desenvolvimento de ações para o TBC.

  Segunda (c) (2021)

   Grupo Focal

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 QUADRO 1: ABORDAGEM ETNOGRÁFICA DO CAMINHO METODOLÓGICO DA INVESTIGAÇÃO AÇÃO PARTICIPATIVA

 FONTE: Elaboração dos autores (2021).

1.1 LOCUS DA PESQUISA, CONSTITUIÇÃO E CARACTERÍSTICAS DOS SUJEITOS/ PARTICIPANTES

O caminho investigativo envolveu o território do Quingoma, localizado no município de Lauro de Freitas, Região Metropolitana de Salvador-Bahia, Zona Turística Costa dos Coqueiros, pois se constitui num espaço de luta e resistência, onde vivem pessoas mobilizadas para discussão de políticas públicas voltadas para uma educação e práticas socioambientais do bem viver. Para além, encontra-se um coletivo formado por educadores, quilombolas e indígenas (coletivo Quingoma) que fomenta, constantemente, diálogos sobre políticas públicas, racismo, educação quilombola, luta pela terra, entre outros temas. Dentro desse mosaico de temas e ações, há na comunidade a organização do TBC. Nesse sentido, com uma abordagem etnográfica inseriu-se todos os participantes em potencial e que aceitaram participar espontaneamente do estudo, nas condições estabelecidas no Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE).

Pelo exposto, os sujeitos partícipes da pesquisa estão distribuídos em dois grupos, a saber: a) Quilombolas e b) Turistas que participaram do Projeto TBC do Quingoma. Em relação aos quilombolas, foi selecionado seis quilombolas - atores sociais - que possuem amplo conhecimento sobre a cultura, a memória e o território do Quilombo, os quais se autodeclararam quilombolas, além disso, participaram ativamente do projeto de TBC desenvolvido pela comunidade. Eles foram selecionados, portanto,

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 segundo critérios de conhecimento acerca do Quilombo, autodeclaração e pelo alto grau de envolvimento na organização e realização da prática turística comunitária.

Além dos seis quilombolas, integram-se ao grupo de sujeitos colaboradores da pesquisa, quatro colaboradores, cuja seleção se deu em virtude do envolvimento ativo deles no projeto TBC do Quingoma, partindo da condição de turistas, eles contribuíram de forma voluntária com a realização dos roteiros, seja por meio de organização de carona solidária ou assessoria na divulgação e publicidade. Outro fator a ser levado em conta, que justifica esta escolha, é a experiência desses turistas no campo do TBC, por entender que todos já tiveram a oportunidade de conhecer e visitar outras comunidades que desenvolvem tal prática.

1.2 DISPOSITIVOS DE COLHEITA DE DADOS

Na primeira etapa, realizou-se uma análise bibliográfica e documental que possibilitou descrever a formação do Quilombo Quingoma, abordando sua constituição identitária e histórica, com a finalidade também de aprofundar reflexões teóricas acerca das concepções, nuançes e controvérsias que envolvem os estudos sobre Educação quilombola e Turismo de Base Comunitária. Esta etapa envolveu a leitura de artigos, teses, além de livros e marcos regulatórios sobre o campo temático em questão.

A segunda etapa foi distribuída em três momentos. No primeiro que se buscou analisar as práticas socioeducativas desenvolvidas pelos quilombolas do Quingoma, foi utilizada a técnica da observação participante com a finalidade de apreender percepções, sentidos, significados, comportamentos, práticas e saberes dos participantes e como eles atribuem sentido às suas práticas cotidianas.

Em seguida, foi utilizada a entrevista semidirigida em grupo focal, junto aos seis participantes quilombolas que foram escolhidos segundo os critérios de inclusão, com a finalidade de aprofundar a compreensão acerca das práticas socioculturais e suas relações com o desenvolvimento do TBC. Neste sentido, a partir de um diálogo ético e recíproco foram abordados, no grupo focal, os seguintes temas: a) dimensão educativa das práticas socioculturais; b) relação com o território (natureza); b) organização comunitária; c) interação com os turistas; d) visão da comunidade sobre o TBC. Assim, foram utilizadas narrativas dos participantes, baseadas em suas redes de conhecimentos, em suas experiências nos relatos a partir de suas vivências no território quilombola.

As informações recolhidas, a partir da primeira etapa e primeiro momento da segunda etapa, forneceram subsídios para realizar, por fim, a sobreposição das informações produzidas e permitiram apreender e analisar as/nas/das práticas socioeducativas, elementos-chave possíveis de contribuição para o desenvolvimento de ações educativas de um TBC, enquanto práxis decoloniais e transmodernas.

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 1.3 MÉTODOS E TÉCNICAS DE ANÁLISE DE INFORMAÇÕES

Quanto ao método de análise e interpretação dos dados, utilizou-se a análise de conteúdo de Bardin (2009). A apreciação das informações coletadas foi desenvolvida por meio do desmembramento do texto em unidades e da construção de categorias concernentes ao objeto de estudo. O objetivo desse procedimento foi identificar, nas narrativas orais dos Quilombolas e dos turistas, sinais e apontamentos para atender a questão de pesquisa.

Logo, na próxima seção, será colocado em relevo a análise das principais práticas socioeducativas quilombolas e as suas contribuições para o desenvolvimento do TBC enquanto práxis decolonial e transmoderna.

4 PRÁTICAS SOCIOEDUCATVAS DO QUILOMBO QUINGOMA: CONTRIBUIÇÕES DECOLONIAIS E TRANSMODERNAS AO TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA

Pelo caminho metodológico desenvolvido foi identificada e analisada as práticas socioeducativas quilombolas materializadas no samba de roda, maculelê, capoeira, danças afro, toré e contação de histórias, além de uma tradicional economia de subsistência. Toda essa cultura popular fecunda e insurgente faz parte da própria gênese e dinâmica do TBC.

Dessas práticas, algumas se evidenciaram: o samba de roda pode ser considerado como uma prática socioeducativa decolonial e transmoderna, pois foi apontado como um dos principais atrativos turísticos das experiências de TBC protagonizadas pela comunidade. Pela sua manifestação, o povo quilombola se transforma e relembra a sua história e, portanto, consegue manifestar alegria e força espiritual mesmo diante das dores e dissabores da vida.

Ao mesmo tempo, o turista afeta e é afetado por esta prática ancestral, pois ao sambar, não apenas movimenta o corpo, mas também a sua visão de mundo, pois ele, no contato face a face com os quilombolas, é atravessado pelos seus gritos de dor e pelas suas pedagogias de esperança. Ou seja, um turista, ao visitar o quilombo do Quingoma, pode vivenciar um processo de descolonização do pensamento e, por conseguinte, alargamento da sua visão de mundo, como expressou a líder local:

O samba de roda é a forma que nós temos de contar nossa verdadeira história, através da roda do samba nos conectamos com os nossos ancestrais e fortalecemos a nossa identidade. Assim, sambamos para alegrar o nosso coração e também para alegrar o turista que veio de longe nos visitar (JOANES, 2021).

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 A fala de “Joanes” revela o quão essa tradição inspira criação e transformação: “O samba de roda é a forma que nós temos de contar nossa verdadeira história, através da roda do samba nos conectamos com os nossos ancestrais e fortalecemos a nossa identidade”. Esse trecho demonstra como o samba de roda é muito mais do que uma dança, é uma práxis política de afirmação identitária, de manutenção do corpo-identidade, mas também do corpo-território. É na roda do samba que o Quilombola conta sua verdadeira história, pois não cabe mais ele aceitar a história dos vencidos, aquela história falaciosa ainda presente em muitos livros didáticos e ensinadas em muitas escolas, faculdades e universidades. Dessa forma, é no samba de roda que o sujeito quilombola se coloca como protagonista da sua própria história e desloca, em sentido ontológico e metafórico, de uma consciência de pelourinho (opressão) para uma consciência de quilombo (libertação). Desta maneira, o samba de roda é, ao mesmo tempo, dança, luta, rito, transcendência e libertação.

A líder quilombola assinala: “assim, sambamos para alegrar o nosso coração e também para alegrar o turista que veio de longe nos visitar”. Ou seja, o samba é também uma terapia de cura, pois é por meio da sua vivência que o quilombola cura suas dores e desnuda suas sombras e sonhos. Nesse processo ritualístico, o turista é convidado também para entrar na roda e aprender. Mas aprender o quê? Não seria melhor dizer desaprender?

Portanto, elementos decoloniais e transmodernos das práticas socioeducativas quilombolas foram identificados e problematizados para pensar um desenvolvimento mais autêntico e enraizado de um turismo outro, de um turismo de afeto, humanístico, marcado pelo diálogo ético, crítico e simétrico entre o turista e o anfitrião.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados que emergiram desse estudo atenderam aos objetivos e possibilitaram algumas considerações que podem contribuir para elaboração de estratégias e planejamento de ações para um TBC centrado numa práxis decolonial e transmoderna. Primeiro, sustentou-se o argumento em que o TBC inclui processos socioeducativos distintos e antagônicos em relação à hegemonia da matriz colonial, posto que estão baseados numa cosmogonia ancestral afro e indígena, ao possibilitarem a interação crítica e ética entre culturas diferentes (do turista e da comunidade receptora), favorecem o diálogo intercultural crítico fundamental para a construção de uma visão transmoderna da contemporaneidade, capaz de ofertar criativas reflexões/soluções para os velhos e novos problemas de uma modernidade em crise.

Segundo, buscou-se ainda ampliar o conceito de TBC, a partir das vozes dos próprios quilombolas, nesta artesania poético-filosófica floresceu até um poema fecundado na interação com estas vozes. O poema epifânico se faz verbo criador (palavra viva) ao dizer que o ‘’Turismo comunitário é grito e semeadura, é conhecimento em movimento. É Riso. É Rio. É acolher a dor do outro num sentimento de comum- pertencimento. É tomar banho de lagoa e descobrir o amor. Mas é também cortar o

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 pé na Ostra”.

Portanto, esta pesquisa suscitou reflexões que podem contribuir com o florescimento de um Turismo de Base Comunitária enquanto práxis educativa decolonial e transmoderna, ou seja, um turismo de semeadura, um canto de (re) existência quilombola, um movimento fecundo de renovação do mundo.

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