4 de outubro de 2014

Há meio século, dona Eulália é referência em “tchá cô bolo”


Com 80 anos, a senhora atrai centenas de pessoas à sua casa para provar o famoso bolo de arroz, a Lixeira

Isa Sousa/MidiaNews


Dona Eulália: 80 anos de idade e 56 anos servindo aos cuiabanos

LISLAINE DOS ANJOS 
DA REDAÇÃO
Há 56 anos, quando começou a fazer bolos de arroz e de queijo para complementar a renda da família, Eulália da Silva Soares não imaginava que seus quitutes a transformariam em um ícone da cuiabania e que se tornaria famosa nacionalmente por seu talento.

Atualmente com 80 anos, a senhora modesta e de riso fácil diz apenas agradecer a Deus pelas conquistas e fama alcançada, que já a fez receber personalidades e políticos variados em sua casa, localizada no bairro da Lixeira, na Capital – todos interessados em comer o tradicional “tchá cô bolo” cuiabano.

“Já recebi muita gente importante aqui, mas não consigo lembrar de todos só pela memória, porque tenho labirintite e esqueço muitos nomes [risos]. Mas quem vem muito aqui é político, principalmente. Um dos que eu lembro que veio aqui e gostou muito foi o governador de São Paulo, [Geraldo] Alckmin”, conta.

Dona Eulália, como se tornou conhecida, acredita que o amor com que se dedica a preparar seus bolos que os fazem ter um sabor único ao paladar de quem os experimenta, faz com que pessoas aguardem, ainda de madrugada, em frente a um corredor estreito – que dá acesso ao salão da sua casa –, pelo momento em que ela irá abrir as portas.




"Eu acho que meu segredo é o amor. Aqui é um lugarzinho tão simples, mas a gente recebe a todos de coração aberto"
“Eu acho que meu segredo é o amor. Aqui é um lugarzinho tão simples, mas a gente recebe a todos de coração aberto. Fico lisonjeada de saber que as pessoas, às vezes, deixam de ir a lugares mais chiques para vir comer aqui. Só tenho que agradecer a Deus pelo dom que ele me deu”, diz.

Dona Eulália recebeu a reportagem do MidiaNews na manhã da última quinta-feira (25) e, entre uma pergunta e outra, sempre parava para ser cumprimentada por algum cliente, amigo ou neto que chegava bem cedo ao local para tomar café, antes de ir para a escola ou trabalho.

Ela minimiza a fama alcançada e revela que, quando começou a fazer os quitutes, em 1958, nem mesmo sabia a receita exata a seguir.

“Para mim, é muito importante ser conhecida assim. Porque, quando eu comecei, eu não esperava. Nós morávamos em um sítio, em Aricazinho [comunidade rural de Cuiabá] e eu tinha uma tia que sempre fazia bolos para festas. Eu sempre a vi fazendo, mas nunca tinha experimentado fazer, porque não sabia”, recorda.

Em 1956, dona Eulália se mudou com o marido, Eurico Soares, hoje com 94 anos, para o mesmo endereço onde reside até hoje, na Rua Professor João Félix, no bairro da Lixeira.

Ela conta que, em 1958, pediu a Eurico, que era pedreiro, para que construísse um forno para que ela tentasse fazer os mesmos bolos de arroz que sua tia fazia, a fim de tentar ajudar na renda da família.



Isa Sousa/MidiaNews


O tradicional bolo de arroz da Dona Eulália, recém-saído do forno à lenha

“Eu tinha filhos já na idade de estudar e eu tinha pouco estudo, não podia arranjar um serviço para ajudar meu marido. Pensei em fazer isso pra ver se quem sabe dava certo, pra ajudar. E graças a Deus deu muito certo. Hoje em dia, vejo todos os meus filhos formados”, conta.

Dona Eulália conta que foi testando várias receitas, tentando se lembrar de quais ingredientes e da quantidade de cada um que precisava usar, até acertar.

“Não tinha uma receita. Eu ia fazendo, experimentando, achava que não saía igual ao dela, e continuava tentando. Quando melhorou, eu passei a fazer para vender e pagava a cinco ou seis meninos para oferecer nas escolas”, diz.

Hoje, a senhora vende cerca de cinco mil bolos por semana. Segundo ela, às terças e quintas-feiras, ela vende cerca de 600 a 700 bolos por dia. Aos sábados e domingos, a produção sobe para dois mil bolos por dia.

Para atender a todos e dar conta da semana, ela conta com a ajuda da família. Ela possui oito filhos, sendo dois homens que moram no interior do Estado e seis filhas que moram em Cuiabá e que, acompanhadas dos genros, filhos e netos, auxiliam nos trabalhos na casa nos dias de atendimento.

“Tenho até uma bisneta que já trabalha aqui. Minha filha caçula [Claudinete Soares de Oliveira], hoje, é a responsável por gerenciar o local. Ela é responsável por tudo, quem resolve tudo aqui”, conta.

Dona Eulália, hoje, tem 21 netos e 20 bisnetos, e grande parte trabalha no salão, principalmente nos finais de semana e feriado.




Isa Sousa/MidiaNews


"Já recebi muita gente importante, mas tenho labirintite e não lembro o nome de todos", conta, entre risos
“No domingo, mesmo, 12 pessoas trabalham aqui. Só pra atender as pessoas, tem que ser uns três ou quatro. E ainda fica aquela fila grande esperando para ocupar cadeira, buscar bolo”, afirma.

Projeção

Quando acertou a receita, Dona Eulália passou a atender encomendas para festas de vizinhos e, conforme foram aumentando os pedidos, o marido foi construindo mais fornos – hoje, há quatro fornos à lenha no salão de sua casa.]

No entanto, a projeção dos quitutes – bolos de arroz e de queijo e as tradicionais “chipas” – ocorreu por meio da tradicional Festa de São Benedito, onde ela serviu por 13 anos.

“Teve uma época em que a festa de São Benedito tinha tudo de graça e, depois, parou e ficou só a missa. Então, um rei da festa, que já faleceu e era lá do Coxipó, me falou: ‘vamos experimentar fazer esse bolo? Porque agora não tem mais nada depois que termina a missa. Quem sabe conseguimos vender’. E deu muito certo”, recorda.

A senhora conta que os festeiros da festa compravam seus bolos para vender após a missa na Paróquia de São Benedito, durante os quatro dias de festa, de quinta-feira a domingo. No entanto, o volume de bolos pedidos foi aumentando no decorrer dos anos e dona Eulália se viu forçada a “sair de cena”. 




Isa Sousa/MidiaNews


As tradicionais chipas de Dona Eulália: uma dos mais pedidos para se tomar com café
“Quando terminava a missa lá em São Benedito, o pessoal nem esperava mais pelos bolos lá e já vinha até aqui pra comer. Aí eu não dava mais conta de fazer. Porque precisa atender lá e aqui também’, afirma.

Na ocasião, segundo ela, apenas os oito filhos não eram suficientes para ajudar na produção e ela precisava pagar pessoas para socar o arroz no pilão e fazer a massa.

“Começava na quinta-feira, que era o primeiro dia, com dois ou três mil bolos. Quando chegava domingo, teve ano que a demanda aumentou para seis mil. Você amassava bolo o dia inteiro e a noite inteira. Começava a assar cinco horas da tarde de um dia para às 4h da manhã estar tudo pronto, assado e no isopor”, conta.

Na sequência, ela foi personagem do quadro “Me Leva, Brasil”, que era dirigido pelo jornalista Maurício Kubrusly no programa “Fantástico”, da Rede Globo. Em seguida, foi a vez de simpática quituteira ir parar no programa Mais Você, apresentado por Ana Maria Braga.

“Aí foi aumentando a freguesia mesmo. Terça e quinta o público é menor, mas sábado e domingo está sempre cheio. Vem aquelas pessoas que acordam cedo, mas também vem o pessoal que sai das baladas. No domingo, quando é 4 horas, está cheio de gente que vem de festas, às vezes está até meio bêbado, mas espera aí na frente pra poder comer antes de ir pra casa. Graças a Deus, hoje eu tenho uma clientela muito boa”, diz, entre risos.

Rotina





"Pra mim, ver toda a família envolvida é muito importante, porque eu sei que, com a minha falta, eles vão continuar. Não vai acabar. Esse é meu sonho e eu tenho certeza que eles vão continuar. "Diferente de outros bolos de arroz vendidos no mercado, os feitos por dona Eulália contam com arroz socado no pilão, o que faz da produção um processo um pouco mais lento e especial, e são assados no forno à lenha.

“Já experimentei comprar o fubá pronto, mas não fica igual. Então, meu neto soca o arroz para mim, rala a mandioca e faz o angu, misturando tudo à noite’, conta.

Ela conta que se levanta sempre às 3 horas. Sendo devota de São Benedito e São José, reserva um tempo para rezar e, em seguida, começa a trabalhar, seja fazendo o chocolate quente, café e chá que são servidos no salão, seja preparando as massas dos bolos para assar.

“Levanto às 3 horas porque a massa tem que ser feita de madrugada, não no dia anterior. Por volta das 4 horas, eles [filhos e netos] chegam pra me ajudar. Até hoje eu coloco a mão na massa. Minha filha também prepara, mas enquanto eu aguento, eu gosto de preparar. Depois de mexer na massa, eu volto a deitar e eles tomam conta dos clientes”, revela.

Segundo dona Eulália, os bolos começam a ser assados às 5 horas, para que às 5h30 as portas sejam abertas. De todo o processo, ela diz que uma das coisas que mais sente falta é de poder colocar as travessas de bolos para assar no forno.





"Eu só espero que Deus me ajude, me dê mais alguns anos de vida, que se não for pra eu amassar o bolo, pra que eu possa pelo menos assistir a minha família trabalhando"“Hoje, tenho prótese nos dois joelhos, então não tenho muita segurança pra andar e por isso não posso carregar as coisas para assar. Isso eu não posso mais fazer e sinto falta, porque eu andava de um lado pro outro e quando a encomenda era pouca, eu nem precisava incomodar eles. Eu mesmo fazia e assava. Hoje em dia, não”, conta.

Realização e sonho

Dona Eulália se diz realizada com tudo que conquistou, mas do que mais se orgulha é de ver a sua atividade ajudou na formação dos filhos e hoje é uma das razões da união de sua grande família.

Ela se emociona ao recordar que as filhas, mesmo trabalhando durante a semana toda, sempre voltavam à sua casa nos finais de semana para auxiliá-la com as encomendas.

“Essa filha que assa os bolos, mesmo, é professora e tinha duas carteiras, trabalhava a semana inteira, mas no domingo ela sempre estava aqui pra me ajudar. Isso é muito importante para mim. 
Porque, se fosse outro, pensava assim: ‘eu tenho meu vencimento, meu marido ganha bem, eu não vou ficar lá no forno e atendendo os outros’. Mas não. Graças a Deus, hoje ela aposentou e continua aqui comigo”, conta.

Segundo dona Eulália, “ todo mundo ajuda e todo mundo ganha” trabalhando com ela.

“O meu bisneto, mesmo, me ajuda desde os 14 anos. Hoje ele é formado, mas continua aqui. Ele diz que quer arranjar um serviço que ganhe mais do que aqui e ainda não encontrou, por isso está aí. [risos] Ele faz de tudo, também. Atende, serve, amassa o bolo, tudo”, diz.




Isa Sousa/MidiaNews


Dona Eulália se emociona ao recordar sua trajetória: "Não pensei que seria assim quando comecei"
Para ela, ver que a atividade une a família “é um alívio” e aumenta o seu sonho de não ver a tradição se acabar.

“Pra mim, ver toda a família envolvida é muito importante, porque eu sei que com a minha falta, eles vão continuar. Não vai acabar. Esse é meu sonho e eu tenho certeza que eles vão continuar. Eu só espero que Deus me ajude, me dê mais alguns anos de vida, que se não for pra eu amassar o bolo, pra que eu possa pelo menos assistir a minha família trabalhando”, revela.

Serviço

Quem quiser provar o tradicional “tchã cô bolo” da dona Eulália deve ir ao local às terças e quintas-feiras, bem como aos sábados, domingos e feriados, a partir das 5h30.

Às terças e quintas-feiras, ela fecha a casa ao público às 10 horas. Aos sábados, domingos e feriados, o atendimento é encerrado por volta das 11h30.

Cada bolo - independente se for de queijo ou de arroz – custa R$ 2,50. Café, chocolate quente, leite e chá podem ser servidos à vontade, ao custo único de R$ 1,50.



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