Com 80 anos, a senhora atrai centenas de pessoas à sua casa para provar o famoso bolo de arroz, a Lixeira
Isa Sousa/MidiaNews
Dona Eulália: 80 anos de idade e 56 anos servindo aos cuiabanos
LISLAINE DOS ANJOS
DA REDAÇÃO
Há 56 anos, quando começou a fazer bolos de arroz e de queijo para complementar a renda da família, Eulália da Silva Soares não imaginava que seus quitutes a transformariam em um ícone da cuiabania e que se tornaria famosa nacionalmente por seu talento.
Atualmente com 80 anos, a senhora modesta e de riso fácil diz apenas agradecer a Deus pelas conquistas e fama alcançada, que já a fez receber personalidades e políticos variados em sua casa, localizada no bairro da Lixeira, na Capital – todos interessados em comer o tradicional “tchá cô bolo” cuiabano.
“Já recebi muita gente importante aqui, mas não consigo lembrar de todos só pela memória, porque tenho labirintite e esqueço muitos nomes [risos]. Mas quem vem muito aqui é político, principalmente. Um dos que eu lembro que veio aqui e gostou muito foi o governador de São Paulo, [Geraldo] Alckmin”, conta.
Dona Eulália, como se tornou conhecida, acredita que o amor com que se dedica a preparar seus bolos que os fazem ter um sabor único ao paladar de quem os experimenta, faz com que pessoas aguardem, ainda de madrugada, em frente a um corredor estreito – que dá acesso ao salão da sua casa –, pelo momento em que ela irá abrir as portas.
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"Eu acho que meu segredo é o amor. Aqui é um lugarzinho tão simples, mas a gente recebe a todos de coração aberto"
“Eu acho que meu segredo é o amor. Aqui é um lugarzinho tão simples, mas a gente recebe a todos de coração aberto. Fico lisonjeada de saber que as pessoas, às vezes, deixam de ir a lugares mais chiques para vir comer aqui. Só tenho que agradecer a Deus pelo dom que ele me deu”, diz.
Dona Eulália recebeu a reportagem do MidiaNews na manhã da última quinta-feira (25) e, entre uma pergunta e outra, sempre parava para ser cumprimentada por algum cliente, amigo ou neto que chegava bem cedo ao local para tomar café, antes de ir para a escola ou trabalho.
Ela minimiza a fama alcançada e revela que, quando começou a fazer os quitutes, em 1958, nem mesmo sabia a receita exata a seguir.
“Para mim, é muito importante ser conhecida assim. Porque, quando eu comecei, eu não esperava. Nós morávamos em um sítio, em Aricazinho [comunidade rural de Cuiabá] e eu tinha uma tia que sempre fazia bolos para festas. Eu sempre a vi fazendo, mas nunca tinha experimentado fazer, porque não sabia”, recorda.
Em 1956, dona Eulália se mudou com o marido, Eurico Soares, hoje com 94 anos, para o mesmo endereço onde reside até hoje, na Rua Professor João Félix, no bairro da Lixeira.
Ela conta que, em 1958, pediu a Eurico, que era pedreiro, para que construísse um forno para que ela tentasse fazer os mesmos bolos de arroz que sua tia fazia, a fim de tentar ajudar na renda da família.
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O tradicional bolo de arroz da Dona Eulália, recém-saído do forno à lenha
“Eu tinha filhos já na idade de estudar e eu tinha pouco estudo, não podia arranjar um serviço para ajudar meu marido. Pensei em fazer isso pra ver se quem sabe dava certo, pra ajudar. E graças a Deus deu muito certo. Hoje em dia, vejo todos os meus filhos formados”, conta.
Dona Eulália conta que foi testando várias receitas, tentando se lembrar de quais ingredientes e da quantidade de cada um que precisava usar, até acertar.
“Não tinha uma receita. Eu ia fazendo, experimentando, achava que não saía igual ao dela, e continuava tentando. Quando melhorou, eu passei a fazer para vender e pagava a cinco ou seis meninos para oferecer nas escolas”, diz.
Hoje, a senhora vende cerca de cinco mil bolos por semana. Segundo ela, às terças e quintas-feiras, ela vende cerca de 600 a 700 bolos por dia. Aos sábados e domingos, a produção sobe para dois mil bolos por dia.
Para atender a todos e dar conta da semana, ela conta com a ajuda da família. Ela possui oito filhos, sendo dois homens que moram no interior do Estado e seis filhas que moram em Cuiabá e que, acompanhadas dos genros, filhos e netos, auxiliam nos trabalhos na casa nos dias de atendimento.
“Tenho até uma bisneta que já trabalha aqui. Minha filha caçula [Claudinete Soares de Oliveira], hoje, é a responsável por gerenciar o local. Ela é responsável por tudo, quem resolve tudo aqui”, conta.
Dona Eulália, hoje, tem 21 netos e 20 bisnetos, e grande parte trabalha no salão, principalmente nos finais de semana e feriado.
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"Já recebi muita gente importante, mas tenho labirintite e não lembro o nome de todos", conta, entre risos
“No domingo, mesmo, 12 pessoas trabalham aqui. Só pra atender as pessoas, tem que ser uns três ou quatro. E ainda fica aquela fila grande esperando para ocupar cadeira, buscar bolo”, afirma.
Projeção
Quando acertou a receita, Dona Eulália passou a atender encomendas para festas de vizinhos e, conforme foram aumentando os pedidos, o marido foi construindo mais fornos – hoje, há quatro fornos à lenha no salão de sua casa.]
No entanto, a projeção dos quitutes – bolos de arroz e de queijo e as tradicionais “chipas” – ocorreu por meio da tradicional Festa de São Benedito, onde ela serviu por 13 anos.
“Teve uma época em que a festa de São Benedito tinha tudo de graça e, depois, parou e ficou só a missa. Então, um rei da festa, que já faleceu e era lá do Coxipó, me falou: ‘vamos experimentar fazer esse bolo? Porque agora não tem mais nada depois que termina a missa. Quem sabe conseguimos vender’. E deu muito certo”, recorda.
A senhora conta que os festeiros da festa compravam seus bolos para vender após a missa na Paróquia de São Benedito, durante os quatro dias de festa, de quinta-feira a domingo. No entanto, o volume de bolos pedidos foi aumentando no decorrer dos anos e dona Eulália se viu forçada a “sair de cena”.
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As tradicionais chipas de Dona Eulália: uma dos mais pedidos para se tomar com café
“Quando terminava a missa lá em São Benedito, o pessoal nem esperava mais pelos bolos lá e já vinha até aqui pra comer. Aí eu não dava mais conta de fazer. Porque precisa atender lá e aqui também’, afirma.
Na ocasião, segundo ela, apenas os oito filhos não eram suficientes para ajudar na produção e ela precisava pagar pessoas para socar o arroz no pilão e fazer a massa.
“Começava na quinta-feira, que era o primeiro dia, com dois ou três mil bolos. Quando chegava domingo, teve ano que a demanda aumentou para seis mil. Você amassava bolo o dia inteiro e a noite inteira. Começava a assar cinco horas da tarde de um dia para às 4h da manhã estar tudo pronto, assado e no isopor”, conta.
Na sequência, ela foi personagem do quadro “Me Leva, Brasil”, que era dirigido pelo jornalista Maurício Kubrusly no programa “Fantástico”, da Rede Globo. Em seguida, foi a vez de simpática quituteira ir parar no programa Mais Você, apresentado por Ana Maria Braga.
“Aí foi aumentando a freguesia mesmo. Terça e quinta o público é menor, mas sábado e domingo está sempre cheio. Vem aquelas pessoas que acordam cedo, mas também vem o pessoal que sai das baladas. No domingo, quando é 4 horas, está cheio de gente que vem de festas, às vezes está até meio bêbado, mas espera aí na frente pra poder comer antes de ir pra casa. Graças a Deus, hoje eu tenho uma clientela muito boa”, diz, entre risos.
Rotina
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"Pra mim, ver toda a família envolvida é muito importante, porque eu sei que, com a minha falta, eles vão continuar. Não vai acabar. Esse é meu sonho e eu tenho certeza que eles vão continuar. "Diferente de outros bolos de arroz vendidos no mercado, os feitos por dona Eulália contam com arroz socado no pilão, o que faz da produção um processo um pouco mais lento e especial, e são assados no forno à lenha.
“Já experimentei comprar o fubá pronto, mas não fica igual. Então, meu neto soca o arroz para mim, rala a mandioca e faz o angu, misturando tudo à noite’, conta.
Ela conta que se levanta sempre às 3 horas. Sendo devota de São Benedito e São José, reserva um tempo para rezar e, em seguida, começa a trabalhar, seja fazendo o chocolate quente, café e chá que são servidos no salão, seja preparando as massas dos bolos para assar.
“Levanto às 3 horas porque a massa tem que ser feita de madrugada, não no dia anterior. Por volta das 4 horas, eles [filhos e netos] chegam pra me ajudar. Até hoje eu coloco a mão na massa. Minha filha também prepara, mas enquanto eu aguento, eu gosto de preparar. Depois de mexer na massa, eu volto a deitar e eles tomam conta dos clientes”, revela.
Segundo dona Eulália, os bolos começam a ser assados às 5 horas, para que às 5h30 as portas sejam abertas. De todo o processo, ela diz que uma das coisas que mais sente falta é de poder colocar as travessas de bolos para assar no forno.
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"Eu só espero que Deus me ajude, me dê mais alguns anos de vida, que se não for pra eu amassar o bolo, pra que eu possa pelo menos assistir a minha família trabalhando"“Hoje, tenho prótese nos dois joelhos, então não tenho muita segurança pra andar e por isso não posso carregar as coisas para assar. Isso eu não posso mais fazer e sinto falta, porque eu andava de um lado pro outro e quando a encomenda era pouca, eu nem precisava incomodar eles. Eu mesmo fazia e assava. Hoje em dia, não”, conta.
Realização e sonho
Dona Eulália se diz realizada com tudo que conquistou, mas do que mais se orgulha é de ver a sua atividade ajudou na formação dos filhos e hoje é uma das razões da união de sua grande família.
Ela se emociona ao recordar que as filhas, mesmo trabalhando durante a semana toda, sempre voltavam à sua casa nos finais de semana para auxiliá-la com as encomendas.
“Essa filha que assa os bolos, mesmo, é professora e tinha duas carteiras, trabalhava a semana inteira, mas no domingo ela sempre estava aqui pra me ajudar. Isso é muito importante para mim.
Porque, se fosse outro, pensava assim: ‘eu tenho meu vencimento, meu marido ganha bem, eu não vou ficar lá no forno e atendendo os outros’. Mas não. Graças a Deus, hoje ela aposentou e continua aqui comigo”, conta.
Segundo dona Eulália, “ todo mundo ajuda e todo mundo ganha” trabalhando com ela.
“O meu bisneto, mesmo, me ajuda desde os 14 anos. Hoje ele é formado, mas continua aqui. Ele diz que quer arranjar um serviço que ganhe mais do que aqui e ainda não encontrou, por isso está aí. [risos] Ele faz de tudo, também. Atende, serve, amassa o bolo, tudo”, diz.
Isa Sousa/MidiaNews
Dona Eulália se emociona ao recordar sua trajetória: "Não pensei que seria assim quando comecei"
Para ela, ver que a atividade une a família “é um alívio” e aumenta o seu sonho de não ver a tradição se acabar.
“Pra mim, ver toda a família envolvida é muito importante, porque eu sei que com a minha falta, eles vão continuar. Não vai acabar. Esse é meu sonho e eu tenho certeza que eles vão continuar. Eu só espero que Deus me ajude, me dê mais alguns anos de vida, que se não for pra eu amassar o bolo, pra que eu possa pelo menos assistir a minha família trabalhando”, revela.
Serviço
Quem quiser provar o tradicional “tchã cô bolo” da dona Eulália deve ir ao local às terças e quintas-feiras, bem como aos sábados, domingos e feriados, a partir das 5h30.
Às terças e quintas-feiras, ela fecha a casa ao público às 10 horas. Aos sábados, domingos e feriados, o atendimento é encerrado por volta das 11h30.
Cada bolo - independente se for de queijo ou de arroz – custa R$ 2,50. Café, chocolate quente, leite e chá podem ser servidos à vontade, ao custo único de R$ 1,50.
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