PL cria reserva de mercado para fornecimento de merenda escolar

por Léo Pinho

Em tese a imposição de leite fluido, menos processado e portanto mais saudável do que o leite em pó, é positiva. Mas esta seria a primeira lei a regulamentar um alimento específico para a merenda de todo o território nacional. E como ela há mais de dez outras tramitando neste momento no Congresso, todas versando sobre alimentos diversos. Se aprovadas, estas leis criariam um lobby nacional para o fornecimento de insumos para a merenda. Em consequência, cria também reservas de mercado para os grandes produtores, reduzindo à tabula raza a alimentação das alunas e dos alunos brasileiros, quando eles são diferentes e diversificados entre si. Trata-se de um erro por inúmeros motivos. Vejamos alguns:

– Sazonalidade – Os projetos de lei acabam obrigando os governos federal, estaduais e municipais a adquirir produtos fora de época, o que é prejudicial para os alunos – e também para a agropecuária, principalmente aquela produzida por cooperativas que reúnem famílias de diversas comunidades, mais diversificada do que a monocultura das gigantes brasileiras e multinacionais do setor.

– Desnutrição – A merenda escolar é estudada e definida por profissionais. Eles conhecem as necessidades da comunidade para a qual trabalham e determinam o cardápio conforme a idade de seu público-alvo. Impor o fornecimento de determinado produto no âmbito nacional engessa o trabalho dos nutricionistas, o que se refletirá em resultados mais pobres para os alunos da rede pública.

Em junho do ano passado, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação emitiu um parecer contra o PL. “A Coordenação de Segurança Alimentar e Nutricional (COSAN) compreende que a atual legislação já corrobora para a oferta de alimentação saudável e adequada, que compreende o uso de alimentos variados, seguros e que respeitem a cultura e as tradições alimentares, contribuindo para o desenvolvimento do aluno em conformidade com a faixa etária, sexo, atividade física e o estado de saúde dos escolares considerando o planejamento prévio feito por profissional capacitado”, diz a nota técnica.

Há que se considerar, sobretudo, o contexto em que se tenta estabelecer reserva de mercado usando-se um dos serviços públicos mais sagrados, que é a merenda, através do qual historicamente os pequenos médios produtores fornecem para sua própria comunidade. Lembrando que muitos dos programas de fornecimentos de alimentação escolar cumprem dupla função, beneficiando socialmente tanto os alunos das escolas públicas quanto os pequenos produtores. Hoje, no entanto, o cenário é aflitivo.

Esse índice é maior na área rural, justamente onde milhões de famílias brasileiras pelejam para plantar e colher. Havia suporte do governo federal para elas até 2016, mas esse suporte vem sendo cada vez mais ameaçado. Os R$ 587 milhões investidos pelo Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) em 2012 chegaram em 2019 a R$ 41,3 milhões, o valor mais baixo da História.

No mesmo ano, o BNDES suspendeu o repasse de verbas para o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), e o governo federal deixou de repassar ao menos R$ 6 bilhões dos R$ 30 bilhões anunciados para a safra 2018/2019 da agricultura familiar. Hoje, a própria Lei Orçamentária Anual (LOA) proposta pelo governo prevê um corte de R$ 1,3 bilhão que seriam destinados ao Pronaf, um corte de 40% em relação ao volume previsto.

Não são dados soltos. Em conjunto, eles fornecem um retrato do desmonte de dois setores públicos: o do abastecimento, dentro do qual os pequenos e médios produtores precisam ser encarados como prioridade pelo Estado, cuja função social afinal é a de suprir a sua população; e o da merenda escolar, em que o próprio Estado deveria manter o patrimônio mais valioso do Brasil – as suas crianças.

A Unisol (Central de Cooperativas e Empreendimentos Solidários) batalha no Congresso Nacional contra o PL do leite fluido e suas variantes. Nosso apoio é para o PL 823/2021, de autoria do deputado Pedro Uczai. Ele regulamenta medidas de amparo à agricultura familiar que já tinham sido regulamentadas por uma lei aprovada em 2020 – mas quase totalmente vetada pelo presidente Jair Bolsonaro!

Claro, trata-se de um PL progressista. Ele entende o Estado como um regulador das relações socioeconômicas entre compatriotas, redistribuindo recursos para quem mais carece deles. Não é para isso que o Estado foi inventado?

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN