10 de junho de 2018

Turismo como estratégia


Pesquisador estuda a mudança de imagem do Brasil no exterior e suas repercussões nos megaeventos esportivos

Márcio Ferrari

ComunicaçãoSociologia

Vista do Rio de Janeiro: imagem de praia, sol e mar não basta para tentar atrair turismo mais qualificadoImagem: Léo Ramos


Depois de décadas marcado pela imagem turística de um país alegre, carnavalesco e futebolístico, o Brasil oficialmente recebeu a Copa do Mundo de 2014 vendendo ao mundo um perfil diferente. “Ironicamente, não é a imagem do futebol que se quer agregar à ‘marca Brasil’”, diz Michel Nicolau Netto, professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp). “Ao contrário, essa é a imagem velha, que apenas permanece se ressignificada. A imagem que se quer agregar é a do megaevento, dos grandes negócios, da excelência, do consumo do alto padrão etc.”

Esse outro Brasil não foi um produto novo desenhado para a Copa, mas o eixo central da política de administração simbólica do Instituto Brasileiro de Turismo, antiga Empresa Brasileira de Turismo (Embratur), no século XXI. A estratégia de marketing também compreende uma recolocação do país no mercado global de turismo, política inaugurada em 2003, quando a criação do Ministério do Turismo absorveu as funções burocráticas da Embratur, que ficou com a incumbência de promover a imagem do Brasil no exterior.

Nicolau Netto vem estudando esse período desde 2012, primeiro em um trabalho de pós-doutorado e agora com um projeto de pesquisa. Ambos tiveram apoio da FAPESP. O objetivo do pesquisador é reunir os resultados dos dois estudos em livro, após trabalho de campo em São Paulo, Rio de Janeiro, Cuiabá e Nova York e visita a feiras de turismo em Madri, São Paulo, Buenos Aires e Rio de Janeiro.

“Pude observar que a Embratur passou, desde 2002, a atuar como um agente global que adota uma série de discursos para construir a imagem do Brasil”, diz Nicolau Netto. “Nessa construção de imagem são centrais as categorias modernidade e diversidade.” O período é marcado pela articulação dos órgãos oficiais em torno da ideia de um plano estratégico para atrair atenção internacional ao Brasil como destino turístico.
A questão da imagem é bem menos “natural” do que se pode imaginar. Nicolau observa que a imagem do Rio de Janeiro associada a “praia, sol e povo alegre” não chega a ter 50 anos. No início do século XX, o Rio era “vendido” como uma Paris brasileira, com ênfase no centro da cidade.

Um país com diversidade e modernidade…Imagem: EMBRATUR


Assim, a visão leve e amigável do Brasil foi trabalhada pela Embratur nos anos 1960 e 70 para se contrapor aos prejuízos causados no exterior pela associação do país ao autoritarismo e à violência do regime militar. A própria ideia de liberalidade sexual, movida pelas imagens de mulheres atraentes e escassamente vestidas, hoje abominada globalmente por remeter ao turismo sexual, servia de contraponto e, esperava-se, atenuante à repressão institucional.

Se, de início, a necessidade de anular (no caso do apelo sexual) ou ampliar essa imagem era sobretudo política, neste século passou a ser também econômica. Um esforço de branding (palavra que se refere à construção de marca, emprestada do marketing empresarial) foi posto em movimento. Diversificar e modernizar são estratégias que não buscam atrair um grande número de visitantes, mas, sim, turistas que tragam mais dinheiro ao Brasil.

À imagem de um consumidor monótono de paisagens e clima agradável se acrescenta agora a do consumidor de um país de múltiplas possibilidades culturais e serviços de padrão internacional. A publicidade passa a mostrar um “turista ativo” e consumidor, em lojas, restaurantes ou em passeios. “Não é mais uma indústria de turismo que recebe bem, mas sim que gera valor”, diz Nicolau Netto.

“O foco muda das atrações locais, do ‘nativo’ que samba ou joga futebol, para o próprio turista, agora agindo no espaço do consumo”, prossegue o pesquisador. Nesse cenário, “no momento em que articula a imagem da modernidade, a Embratur, como administrador, não se relaciona apenas à ampliação do inventário simbólico, mas também a seu controle”. Foi assim que a Embratur contratou a empresa catalã Chias Marketing para desenvolver o Plano aquarela: Marketing turístico internacional do Brasil, lançado em 2005 e revisado em 2007 e 2010. O documento se baseou numa extensa pesquisa entre entidades do setor no Brasil e no exterior e uma base empírica de 6 mil turistas brasileiros e estrangeiros.

O esforço oficial se dá também numa estratégia mercadológica que se torna mais agressiva. Em 2002 a Embratur participou de 15 feiras internacionais de turismo e em 2006 foram 40, informa Nicolau Netto, citando números fornecidos por Eduardo Sanovicz, presidente da Embratur entre 2003 e 2007. Sanovicz confirma a constatação do esforço de mudança de imagem, fundamentada em três pilares: a ênfase em negócios e eventos, a promoção da produção cultural brasileira (na qual entram novos setores como o ecoturismo, os eventos e os negócios) e a adoção dos Conventions Bureaus, órgãos regionais que congregam os agentes privados do turismo, na sustentação da atuação da Embratur.

… onde o turista interage com o destino turístico: nova estratégia para promover o paísImagem: Embratur


“A ideia foi abandonar os conceitos dos anos 1990, compreensíveis para a época, centrados em água, areia e coqueiros, e focar nos agentes de viagem”, diz Sanovicz, hoje presidente da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear).

Agora, “os elementos prioritários a serem relacionados à marca-lugar são aqueles relativos à identidade, que precisa ser ressignificada a partir de valores que ao mesmo tempo marquem a singularidade e sejam globalmente compartilhados”, diz Nicolau Netto. “Independentemente da figura jurídica dos escritórios, mesmo quando são puramente públicos – como é o caso da Embratur hoje –, eles tendem a ser operados de acordo com os interesses privados do setor de turismo e coordenados por pessoas que fizeram suas carreiras no mercado”, observa.

A fórmula mercadológica encontrada é a de fugir do exotismo e investir numa “imagem ampliada” do Brasil. Sanovicz baseia o sucesso da estratégia em números: R$ 1,7 bilhão arrecadado com turismo em 2003 e R$ 6 bilhões em 2013. “Quando se fala em marca-país, tem-se com clareza que o principal elemento que agrega valor à marca é aquele que pode ser percebido como parte da identidade de um destino. A ampliação do inventário simbólico adquire valor econômico”, observa Nicolau Netto.

Mas a abertura da imagem do Brasil, com a incorporação de aspectos que antes não eram divulgados internacionalmente, corre o risco de fugir do controle das agências de elaboração de branding. Nesse caso, entra em cena o conceito de “encapsulação”, que é uma especificação clara do que se quer ou não vender. “A diversidade pretendida não é qualquer uma, mas uma diversidade informada pela modernidade”, diz Nicolau Netto. As estratégias são duas: a primeira é aumentar a oferta de “produtos” turísticos. Os atrativos não se resumem mais a destinos tradicionais, como Rio, Salvador e Foz do Iguaçu. A segunda é “aumentar o valor do ‘produto’ turístico”. De acordo com documentos da Embratur, o turista de negócios e eventos gasta US$ 280 por dia, enquanto o de lazer gasta US$ 68.

Camisetas sexistas da Adidas: velha imagem do paísImagem: REPRODUÇÃO


Para Nicolau Netto, o esforço da Embratur enfrentou uma dura prova na Copa do Mundo, quando a tentativa de modernizar a imagem do Brasil foi severamente desafiada pela presença avassaladora da Federação Internacional de Futebol (Fifa) e por patrocinadores internacionais. Houve, então, um contexto de embate simbólico, no qual os agentes buscaram impor suas visões de mundo aos locais. “Mesmo não havendo, em princípio, ruptura entre mercado e política, os conflitos são evidentes”, diz Nicolau Netto. As imagens da abertura da Copa, com mulatas dançando, e as dos anunciantes relegaram as ações da Embratur a um espaço reduzido e pouco visível. “A Embratur infelizmente não conseguiu formular uma ação promocional que desse à marca uma presença maior”, diz Sanovicz.

A questão principal, que se estende à Olimpíada de 2016, são os estatutos legais que garantem proteção às marcas, o que se traduz numa competição feroz entre a imagem desejada pela Embratur e os patrocinadores dos eventos esportivos. “A Embratur busca um padrão que nunca ocorre plenamente”, diz Nicolau Netto. Pouco antes da Copa, a Adidas, um patrocinador oficial do mundial, lançou duas camisetas que remetiam à velha imagem de que a mulher brasileira é um objeto sexual. A repercussão foi tão ruim que a fabricante de material esportivo retirou o produto de circulação rapidamente.

Agências e governos regionais insistem em manter a imagem mais antiga do Brasil, que o governo tenta combater. Nicolau Netto e Sano-vicz concordam que os esforços oficiais se fortaleceram com a intenção do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de alterar a imagem do Brasil no exterior, embora Nicolau Netto observe que a Embratur, no governo petista, tenha se valido de um know-how mercadológico que já vinha dos anos anteriores. O pesquisador também ressalta o interesse das grandes construtoras ligadas aos eventos esportivos e demais atrações numa imagem de Brasil “moderno”.

Trata-se enfim de um conflito entre duas imagens de um país em transição. “Resta saber de que lado estão os interesses dos agentes envolvidos”, diz Nicolau Netto.

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